Ciência: histórica ou experimental?

Você chega em casa e percebe que o quadro valioso que costumava estar na parede está faltando. Ao verificar a janela, nota que ela está ligeiramente aberta, algo que não é comum. Na sala, encontra um copo quebrado no chão e algumas marcas de sujeira perto da cômoda, como se alguém tivesse se apoiado ali. Também percebe que a gaveta do móvel foi forçada, e o conteúdo está desorganizado. Encontra ainda uma luva esquecida no canto da sala, que claramente não é sua. As pegadas de lama ao redor da janela indicam que o invasor provavelmente entrou por ali. Ao inspecionar a área ao redor, percebe que há pequenas fibras no tapete, possivelmente de uma mochila ou roupa. Juntas, essas evidências – a janela aberta, as marcas no chão, a gaveta mexida e a luva – sugerem fortemente que o quadro foi roubado. Enquanto caminhava pela vizinhança, procurando mais pistas, olha pela janela de um vizinho e vê um quadro idêntico ao seu pendurado na parede. Ao se aproximar, nota que há uma marca exclusiva na moldura, suas iniciais, que são diferentes das do seu vizinho. Isso torna bastante improvável que o quadro na casa dele seja uma cópia. Isso confirma ainda mais que o item foi roubado, e agora você tem um suspeito muito forte. Não é preciso ser um Sherlock Holmes para seguir essa cadeia de raciocínio e concluir que você não incorre em grande equívoco se resolver ir adiante com a sua suspeita. Mas para algumas pessoas, dado que você não pode voltar no tempo para ver exatamente o que aconteceu, nem tem uma gravação mostrando tudo, todas as evidências devem ser consideradas inválidas. É como se as investigações das ciências históricas fossem inferiorizadas perante as ciências ditas experimentais; “se não dá pra replicar, então de que vale?”. É um raciocínio que, embora defendido por muitos cientistas, é típico de criacionistas. Eis, por exemplo, o que se encontra no site Answers in Genesis: “Por exemplo, alguns geólogos pegam as taxas atuais de decaimento radiométrico e formação de rochas e imaginam que essas taxas sempre foram as mesmas. Por isso, acham que a Terra é tão antiga (mas não é). Mas não podemos voltar no tempo para testar isso com precisão. “O que podemos fazer, no entanto, é verificar nossa pesquisa histórica contra um relato confiável de uma testemunha ocular. Mas e para a história da Terra? Algo assim existe? Com certeza – e esse incrível compêndio de história não é difícil de encontrar. Basta pegar sua fiel Bíblia”. Mas, como disse, não é algo exclusivo dos criacionistas. Sobre hipóteses acerca do passado remoto, veja, por exemplo, o que escreveu o então editor da Nature, Henry Gee, em 1999: “Elas nunca podem ser testadas por experimentos, e, portanto, são anticientíficas… Nenhuma ciência pode ser histórica”. Existe essa ideia de uma inferioridade das ciências históricas perante as experimentais, o que pode explicar, como ressaltou a filósofa da ciência Carol E. Cleland, “o surpreendente número de físicos e químicos que atacam o status científico da evolução neodarwinista”. Um dos principais responsáveis? A ideia limitada, embora muito comum, de que há um método científico. Esse tal “método científico” pode ser ilustrado com um exemplo. Considere a hipótese (H) “todo cobre expande quando aquecido”. Dessa hipótese, podemos inferir um teste (T) que avalia o que deve acontecer caso H seja verdadeira. Esses testes têm uma forma geral: se a condição C (aquecer um pedaço de cobre, por exemplo) acontecer, então o evento E (expansão do cobre) acontece. Daí, cria-se a condição C em laboratório e verifica-se se observamos o evento E ou não. Uma vez que tenha sido realizado o teste, como avaliamos uma hipótese? Há duas formas “tradicionais”, segundo a cartilha do “verdadeiro” método científico: indutivismo ou falsificacionismo. Da perspectiva indutivista, se prevemos o evento E sob a condição C e o observamos como resultado de um experimento, então isso é tido como confirmação. E se fizermos muitos e muitos experimentos que confirmam H, então essa hipótese é considerada como forte. Evidentemente, há um problema fundamental com o indutivismo: não importa quantos experimentos sejam realizados, jamais haverá um número infinito deles que permita provar que a hipótese se revelou infalivelmente verdadeira. Percebendo esse problema com o indutivismo, o falsificacionismo (geralmente atribuído ao filósofo Karl Popper) toma outra rota. Embora não se possa provar uma hipótese como verdadeira, é possível demonstrá-la falsa. Se nossa hipótese for “todo cobre expande quando aquecido” e observarmos um pedaço de cobre que não expande ao ser aquecido, então essa hipótese será refutada. Segundo Popper e sua escola, devemos sujeitar uma teoria ou hipótese a um “teste arriscado”, isto é, um teste que poderia facilmente demonstrar que a hipótese sob consideração não é verdadeira. Se os eventos observados não ocorrem como o previsto pela hipótese, então ela é rejeitada. Embora muitos físicos não saibam (e isso é uma crítica pessoal minha), esse critério Popperiano também tem problemas muito fundamentais. O já mencionado artigo de Carol E. Cleland critica o falsificacionismo de Popper por duas razões principais: Dificuldade com hipóteses auxiliares: O falsificacionismo presume que uma hipótese pode ser refutada se uma previsão derivada dela for falsificada. No entanto, qualquer teste experimental envolve inúmeras suposições auxiliares sobre o equipamento, condições do experimento e teorias subjacentes. Se um experimento falha em confirmar a previsão de uma hipótese, pode ser que a hipótese esteja errada, mas também pode ser que alguma suposição auxiliar esteja incorreta. Isso torna o falsificacionismo impraticável, pois cientistas geralmente revisam suposições auxiliares antes de descartar uma hipótese central. Prática científica real não segue estritamente o falsificacionismo: Na prática, os cientistas não descartam hipóteses tão rapidamente quanto Popper sugere. Um exemplo clássico é a descoberta de Netuno: quando astrônomos notaram que a órbita de Urano não se ajustava perfeitamente às previsões newtonianas, eles não rejeitaram a Teoria da Gravitação, mas consideraram a existência de um planeta desconhecido influenciando a órbita – e estavam corretos. Tangencialmente, gostaria de ressaltar que o falsificacionismo de Popper também não nos dá o critério perfeito para distinguir o que é ciência do que não é. Uma hipótese científica tem de ser falseável em princípio (condição necessária), mas o fato de uma hipótese ser falseável não implica em ser ciência (ou seja, não é uma condição suficiente). Em resumo, fazer ciência não é tão estereotipado quanto se imagina. Dito isso, agora podemos voltar para a dicotomia ciência experimental vs histórica. Embora na ciência experimental nós possamos refutar hipóteses, geralmente não é possível fazer isso nas ciências históricas; não da mesma forma, pelo menos. Contudo, isso não significa que as ciências históricas não são testáveis. De modo geral, as ciências de natureza histórica (como evolução, geologia, paleontologia) procedem pela formulação de hipóteses alternativas (de preferência mutuamente excludentes), e pela comparação entre as implicações das hipóteses e o que é observado na natureza. Gosto de pensar as teorias e hipóteses nas ciências históricas da perspectiva da máxima verossimilhança: as melhores ideias são aquelas que melhor explicam os fatos observados. Quando possível, nas ciências históricas buscamos o equivalente ao “teste arriscado” de Popper, a presença de algo que é previsto por uma das hipóteses, mas não por outras — buscamos por uma smoking gun. Um exemplo pode ajudar. Em 1980, o geólogo Walter Alvarez e colaboradores sugeriram que um bólido se chocou com o planeta Terra há cerca de 66 milhões de anos. Esse impacto teria sido responsável pela extinção em massa no final do Período Cretáceo, quando mais de 70 % de toda a vida foi extinta, incluindo os amados dinossauros (quase todos eles). Mas, como dizem os criacionistas, se ninguém estava lá para ver, como podemos saber? Bom, para uma cobertura completa da saga por trás dessa descoberta, recomendo o livro T. rex and the Crater of Doom, de um dos pesquisadores envolvidos nesses estudos, o próprio Walter Alvarez. Para os propósitos da nossa discussão, alguns pontos são mais relevantes. Inicialmente, Walter e seu pai, o físico Louis Alvarez, encontraram altos níveis do metal irídio na camada limite do Cretáceo – o nível do registro geológico que corresponde ao final desse período. O irídio é um elemento raro na crosta terrestre, então esse pico é uma anomalia. Alguma fonte exterior à Terra teria de ser a responsável por isso. Inicialmente, consideraram a possibilidade de uma supernova ser a causa (grandes explosões de estrelas espalham elementos químicos pesados pelo Cosmo), mas esse modelo falhou, já que previa a presença de outros isótopos que não foram encontrados, além do irídio. Observe que, embora a hipótese da supernova tenha sido falseada, obviamente ninguém explodiu uma estrela para ver quais eventos se seguiriam. O que se fez foi comparar narrativas históricas com o registro fóssil/geológico, e decidir se a hipótese da supernova era compatível ou não. Alguns tipos de corpos celestes, como asteroides, são ricos em elementos do grupo da platina, como o irídio. Se um desses, de um tamanho suficiente, tivesse se chocado com a Terra, isso poderia explicar o pico de irídio. Além disso, um impacto de tamanhas proporções deixaria diversas outras assinaturas. Por exemplo, desde o teste das primeiras armas nucleares, sabe-se, que sob condições de elevadas pressão e temperatura, forma-se quartzo de impacto. Um impacto das proporções sugeridas pelos Alvarez e seu time de colaboradores seria capaz de produzir esse tipo de rocha. Que foi encontrada em sedimentos do final do Cretáceo. A história é longa, mas em 1991 encontrou-se o que estava de acordo com as previsões mais óbvias da hipótese do impacto: uma cratera. Da idade e tamanho certos, a cratera de impacto na Península de Yucatán, no México, é a nossa smoking gun, uma evidência muito forte a favor de uma hipótese. Embora haja diferenças na prática e epistemologia das ciências experimentais e históricas, não se pode argumentar com sucesso que uma é melhor que a outra. Infelizmente, é muito comum que ciências como a física sejam tidas como “o” modelo do que é ciência de verdade, enquanto as ciências de cunho histórico são tratadas como inferiores, já que “ninguém estava lá para ver” e que não podemos recriar eventos históricos experimentalmente. São ciências diferentes, que operam por métodos diferentes, mas que não cabem numa hierarquia de valor. Quando usamos o termo “método científico” sem reconhecer a pluralidade metodológica, podemos incorrer nesse tipo de erro. Vale a pena refletir sobre isso! (*) João Lucas da Silva é mestre em Ciências Biológicas pela Universidade Federal do Pampa, e atualmente Doutorando em Ciências Biológicas na mesma universidade
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