Medicina de família e comunidade

A pandemia de Covid-19 nos mostrou a importância da saúde como um direito humano, gratuita, de caráter universal e com priorização de acesso às populações que mais necessitam de um olhar de equidade. Mostrou também o despreparo e a fragilidade em uma visão macro, meso e micro, desde relações organizacionais, passando por articulações de serviços de saúde, até a necessidade do trabalho em equipe valorizando questões negligenciadas pelo ensino médico tradicional: o entendimento da percepção de doença, as expectativas frente à saúde e à doença, as ideias de pacientes sobre as próprias condições em saúde e doença, assim como visões acerca do tratamento realizado. E, principalmente, o impacto do adoecimento na funcionalidade, considerando fatores sociais para uma visão integral do indivíduo e de sua inserção no contexto familiar. O modelo biomédico flexneriano se mantém com uma valorização da fragmentação da pessoa humana, propagando-se a dificuldade da abordagem integrada e centrada na pessoa. Questões essenciais para a resolutividade clínica como a educação em saúde direcionada a percepções, conhecimentos e linguagem do paciente são inferiorizadas, comprometendo assim a adesão terapêutica e consequentemente o controle de doenças crônicas não transmissíveis, principalmente no atual cenário de aumento da multimorbidade física, mental e social atrelada ao envelhecimento da população brasileira. Assim, a proposta da medicina de família e comunidade, como especialidade médica em uma formação voltada para a qualidade da assistência com um olhar para a longevidade, para o controle de doenças crônicas não transmissíveis e pela abordagem integrada da saúde física e mental, emerge como solução em potencial para novos desafios em saúde pública enfrentados em uma visão de saúde populacional. O desenvolvimento da formação da especialidade destaca o papel do médico como um facilitador do entendimento e empoderamento da pessoa sobre seu processo de adoecimento, tratamento e manutenção da condição de saúde. O vínculo existente pela valorização da relação médico-paciente, sendo o médico de família o profissional de referência de gerações e de pessoas em momentos distintos do ciclo vital, auxilia no fortalecimento da relação terapêutica, o que aumenta a confiança no tratamento, na conversa sobre informações pessoais e, consequentemente, eleva a resolutividade do plano terapêutico, uma vez que este é compartilhado com o paciente, e não imposto. Assim, a pesquisa de mestrado Análise de Viabilidade do Modelo de Gerenciamento do Cuidado Integral e Centrado em Pacientes com Necessidades de Saúde Diversas pela Medicina de Família e Comunidade, sob orientação do professor João Mazzoncini de Azevedo Marques, destaca como a medicina de família e comunidade contribuiria para a melhoria da qualidade da assistência em saúde, ao acompanhar pessoas com duas ou mais doenças crônicas, físicas e mentais, em associação, através do uso de habilidades de comunicação para a adesão ao plano terapêutico, controle das doenças de base, mudança de estilo de vida e consequentemente evitar desfechos desfavoráveis em saúde, como internações e sobrecarga de seguimentos secundários e terciários. Também versa sobre a importância dos componentes do vínculo e da qualidade para uma visão de gestão clínica, de serviços de saúde e de otimização das potencialidades do sistema, em que a existência de um médico especialista “em gente”, que acompanha famílias durante o ciclo de vida com uma formação clínica e comunitária de qualidade, contribui para o aumento da confiança no tratamento, elevando a satisfação do paciente com o serviço em saúde, assim como aumentando as relações de vínculo pela percepção da empatia e da humanização do trabalho inerente aos valores de formação dessa nova especialidade em ascensão. Porém, por muitos anos, a saúde no Brasil foi vista como produções e metas numéricas, que de nada contribuem para garantir que a facilidade ao acesso do paciente a serviços de saúde esteja associada à qualidade da garantia de acompanhamento ao longo do tempo de grupos vulneráveis e vulnerabilizados, estando os idosos convivendo com doenças crônicas não transmissíveis, entre os seguimentos que mais necessitam de um olhar de gestão da clínica, assim como populações historicamente negligenciadas. Desta forma, temos um período de oportunidades para mudanças, com a proposta de um novo financiamento da atenção primária que destaca a visão inovadora do componente da qualidade, em que, além de números de exames solicitados sem uma garantia de acompanhamento e resolutividade, o vínculo finalmente importa. (*) Cely Carolyne Pontes Morcerf é doutoranda da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto da USP (Universidade de São Paulo).
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