Entre linhas de Machado de Assis, escritor afirma: “Capitu não traiu Bentinho”!

Poucas obras da literatura brasileira despertam debates tão apaixonados e duradouros quanto Dom Casmurro, de Machado de Assis. Desde sua publicação em 1899, leitores, críticos e estudiosos têm se perguntado: Capitu traiu ou não traiu Bentinho? Minha visão, como jornalista, advogado, escritor, leitor e amante das obras de Machado de Assis, se volta para algo muito além da ambiguidade dessa questão, que, diga-se, por sinal, permanece aberta à interpretação. Embora eu afirme: Não, Capitu não traiu Bentinho. E se você afirma que sim, eu questiono? Tem, certeza? Mas você tem certeza que esta traição foi com Escobar.  Pronto. Aqui está já o inicio de minha explicação. Mas início este artigo lembrando que Capitu é, sem dúvida, uma das personagens mais complexas da literatura brasileira. Com seus “olhos de ressaca”, ela fascina não apenas Bentinho, mas também gerações de leitores. Sua força, inteligência e independência, trata-se de figura marcante, especialmente se considerarmos o contexto da época em que a obra foi escrita. E, para mim, Machado de Assis sabia bem disso: a imponência de Capitu, como mulher, naquela época.   Com efeito, penso que Capitu também pode ser vista como um reflexo das expectativas e preconceitos da sociedade patriarcal do século XIX. Como mulher, ela está sujeita ao julgamento constante de homens que se sentem ameaçados por sua liberdade. A desconfiança de Bentinho é, em grande parte, fruto dessa visão machista, que vê na mulher um ser que precisa ser controlado e subjugado. Não. Capitu não traiu Bentinho. Pelo menos minha certeza é que não traiu com Escobar. Se traiu com outra pessoa, Bentinho, obcecado, nem desconfiou. Essa minha visão se inicia pelo obvio: toda a história é contada pela perspectiva Bentinho, já em sua velhice. Ele mesmo se apresenta como um homem amargo, marcado pelas desilusões da vida, e dedica boa parte de suas memórias a construir a imagem de Capitu como uma figura misteriosa e, eventualmente, desleal. Em vários trechos dos relatos de Bentinho, observa-se que não é um narrador objetivo. Nada objetivo alias. Como leitor, me pegava muitas vezes pensando: Continua de contar Bentinho. Vai parar aqui? Observo que suas memórias são filtradas por ressentimentos e inseguranças, todos, de alguma forma, de um passado que se sentiu feliz – ora, porque a certeza da traição e se manter casado, esperando Capitu ter a iniciativa de acabar com o casamento? – o que torna sua versão dos fatos profundamente subjetiva. Recentemente, eu me encontrava em um daqueles debates literários que sempre rendem reflexões, desta vez com minha amiga Amanda Pacheco, uma leitora dedicada e apaixonada por discussões literárias. O tema? Dom Casmurro, de Machado de Assis. Amanda, com toda convicção, declarou que Capitu havia, sim, traído Bentinho. Ela começou a destacar trechos que, em sua visão, “confirmavam” o adultério. Escutei com atenção, mas logo lancei uma provocação: “Amanda, esses trechos que você aponta sugerem a possibilidade de que Capitu tenha traído Bentinho. Mas, e quanto a Escobar? Onde está a confirmação de que ele foi o cúmplice nessa suposta traição? De onde vem essa certeza que Bentinho proclama?” Ela me lançou um olhar que misturava surpresa e ponderação, como quem percebe algo que havia escapado até então. Depois de um instante, admitiu: “É verdade, Alan. Pode ser.” Sorri, aproveitando para concluir: “Pois é, Amanda. Todos se esquecem de Escobar. Para mim, é exatamente aqui que reside a ‘prova cabal’ de que a traição não aconteceu. Bentinho está tão obcecado em acusar Capitu que ignora completamente o papel de Escobar, o amigo que o considerava um irmão. Ora, não seria a traição de Escobar a mais grave de todas? A traição de um amigo? Uma teoria que, recente, ganhou destaque no debate sobre Dom Casmurro foi levantada pelo jornalista e advogado Miguel Matos. Ele sugeriu que o capítulo intitulado “Embargos de Terceiro” da obra, seria uma espécie de “código jurídico” ou “senha” deixada por Machado de Assis para confirmar que Capitu havia, de fato, traído Bentinho. Segundo Matos, as ocorrências ali relatadas, aonde Bentinho vai ao teatro, mas retorna – e encontra Escobar chegando a casa de Capitu e Bentinho – haveria ali a prova da traição. Ainda mais porque ele teria ido falar sobre os “embargos” de um processo com Bentinho. O que, segundo a opinião de meu colega, advogado e jornalista, seria uma desculpa, uma “prova cabal” da traição. Com o devido respeito a Miguel, a ideia de que Machado de Assis teria deixado um código jurídico contradiz a própria essência de sua obra. Machado era um escritor profundamente consciente das fragilidades e contradições humanas, e, para mim, deixou ausente qualquer prova concreta sobre algum envolvimento entre Capitu e Escobar. Ao considerar o contexto do capítulo “Embargos de Terceiro”, fica claro que não há qualquer elemento que comprove a traição de Capitu. Pelo contrário, o uso do termo “cunhadinha” por Escobar reforça a amizade e o respeito que ele tinha por Bentinho. Essa relação, inclusive, é descrita ao longo da obra como uma das mais próximas e sinceras da vida de Bentinho, o que torna a ideia de traição entre os dois ainda mais improvável. O uso de focar em “Embargos de Terceiro” como um dos títulos é parte do estilo de Bentinho como narrador, que se apoia em sua formação jurídica para escrever sua narrativa, mas isso não significa que Machado tenha usado esses termos como uma espécie de pista ou metáfora jurídica. Por isso, inclusive, data máxima vênia, a teoria de que o capítulo “Embargos de Terceiro” seria um “código jurídico” ou uma “senha” que confirma a traição de Capitu não se sustenta quando analisada à luz da narrativa toda de Bentinho. A presença de termos jurídicos na obra é natural, considerando que Bentinho era advogado. Machado de Assis não deixaria uma “senha” oculta só para entendedores de expressões jurídicas. Até porque quando Bentinho finalmente se casa com Capitu, ele claramente já carrega para o casamento um profundo medo de perdê-la. Esse medo é amplificado pelas características de Capitu: sua inteligência, sua perspicácia, sua força de caráter e sua imponência em todas as situações da vida. Capitu é uma mulher que – pelo menos o que Bentinho relata – foge aos padrões de sua época, com uma verdadeira liberdade que, ao mesmo que temo que gera admiração, parece ameaçar Bentinho. Na verdade, repito, pelos próprios relatos de bentinho, me parece que ele tem uma admiração profunda por ela ser tão imponente e também pela forma carismática e confiante que Escobar vive a vida. Daí a desconfiança, que se torna uma obsessão. Explico: É como se Bentinho, ali, na fase em que está vivendo (e escrevendo o livro), lembrando de seu passado, ficasse se questionando “como pode duas pessoas tão maravilhosas terem feito parte de minha vida?”. Uma, minha esposa que reciprocamente me amava, mas ainda sim, amava a si mesma (o que é ótimo, para ele, Bentinho) e outra pessoa, um cara incrível, que me considerava um irmão?    Até mesmo retornando o assunto de quando eu, como leitor, reclamava, “vai parar o relato aqui Bentinho?”, observem bem que no próprio capítulo “Embargos de Terceiro”, Bentinho inicia sua narração expondo o ciúme que sentia de Capitu. Após, continua neste capitulo de que já era tarde para enviar o camarote do teatro (que Capitu não iria) a Escobar, mas não esclarece de onde surgiu essa possibilidade. Essa omissão levanta uma questão crucial: teria sido Capitu quem sugeriu a ideia, como um gesto de consideração e amizade para com Escobar? Por exemplo: Se a história se passasse nos dias atuais, o relato poderia ser reescrito da seguinte forma: “Capitu sugeriu que eu enviasse uma mensagem para Escobar no WhatsApp, oferecendo-lhe o camarote e convidando-o a ir comigo, já que ela mesma não poderia ir.” Essa interpretação moderna revela algo que muitas análises, como a de Miguel Matos, frequentemente ignoram: Capitu, longe de agir de maneira suspeita, demonstra uma atitude de alguém que incentiva a convivência entre o marido e o amigo, sem qualquer receio ou dissimulação. Além disso, a própria insegurança de Bentinho ao longo da narrativa indica que suas suspeitas não se baseiam em provas concretas, mas em um ciúme obsessivo e doentio. O fato de ele não explicitar de quem partiu a sugestão reforça sua tendência paranoica de enxergar traição onde pode haver apenas gestos triviais de gentileza. Portanto, longe de ser um indício de adultério, esse episódio pode ser lido como uma demonstração da generosidade e naturalidade de Capitu. O que parece incomodar Bentinho não são provas objetivas, mas sim a própria independência emocional e intelectual de sua esposa, que ele nunca conseguiu compreender plenamente. Ou, compreendia perfeitamente, e admirava muito isso nela. E continuando, esse ciúme obsessivo por Capitu atinge seu ápice quando Bentinho observa semelhanças entre Ezequiel, seu filho, e Escobar. Para ele, essas semelhanças são a prova definitiva de que Capitu o traiu. No entanto, essa conclusão é puramente subjetiva e nunca é sustentada por fatos concretos. Aliás, me parece que ele é único a ver semelhanças entre o filho e Escobar. Concordam? Na verdade, o próprio Machado de Assis sugere que essas semelhanças podem ser fruto da imaginação de Bentinho, reforçando a ideia de que o protagonista está sendo consumido por sua paranoia. Assim. para a maioria das pessoas, Dom Casmurro pode ser uma obra construída sobre a ambiguidade, a dúvida e a subjetividade. Para mim não. É sobre uma pessoa estar em uma fase da vida arrependida, lembrando de pessoas que admirava, principalmente da mulher que amou – que, aliás, decidiu se separar na hora que constatou: se pensa isso de mim (que o trai com seu amigo) porque então continua casado comigo? Capitu decide se separar. E percebam, ele dá um jeito de dizer ao leitor que ele também havia optado, alias, explica que “não havia opção” a não ser a separação. Ora, e os outros relatos todos? Ele não continuou casado com Capitu? Simples! Para Bentinho, resta aquele relato (data vênia, patético), sobre sorrisinhos e olhares para a foto de Escobar, que já havia falecido. Tanto é assim que, também recentemente, o jornalista Fabio Previdelli, publicou um artigo afirmando que Machado de Assis, o Bruxo do Cosme velho “…analisou a sociedade, as emoções humanas e complexidade da mente de uma forma tão profunda que muitos de seus conceitos foram descobertos, anos depois, por Sigmund Freud, o pai da psicanálise. Concordo com meu colega jornalista: Machado de Assis foi um mestre em retratar as nuances da psicologia humana, e isso é evidente em sua construção de Bentinho. O protagonista é um homem atormentado por suas inseguranças, que se manifestam principalmente em sua relação com Capitu. Desde a juventude, Bentinho demonstra ser uma pessoa introspectiva, dependente da aprovação alheia e facilmente influenciável, como evidenciado pela pressão que sofre de sua mãe para ingressar no seminário e pela influência constante de José Dias, o agregado da família – personagem, alias, que parece não gostar muito. Vejam que incoerência. Concordam?   Fica claro também em Dom Casmurro que Machado de Assis, com sua genialidade, nos convida a refletir sobre a natureza humana, sobre os efeitos do ciúme e da obsessão, e sobre a impossibilidade de se chegar a verdades absolutas em questões tão complexas. Capitu, com seus “olhos de ressaca”, continua a desafiar gerações, enquanto Bentinho, o narrador obsessivo e inseguro, permanece como um símbolo das armadilhas que a mente humana pode criar. E Bentinho, se perde em sua própria narrativa, deixando de lado o que deveria ser um golpe ainda mais doloroso – a suposta traição do amigo de confiança. E então nesse “aparente” emaranhado de dúvidas e lacunas, cabe ao leitor decidir: a traição é real ou apenas o fruto da mente atormentada de um homem consumido pelo ciúme? Se há uma verdade em Dom Casmurro, é que Machado de Assis não estava preocupado em dar respostas, mas em provocar reflexões. A ideia de que “Embargos de Terceiro” prova a traição de Capitu não apenas falha em capturar a essência da obra, como também simplifica uma narrativa que, em sua ambiguidade, encontra sua maior força. É essa riqueza de interpretações que faz de Dom Casmurro uma das obras mais fascinantes e atemporais da literatura mundial. Ou seja, se é mesmo que o aspecto mais intrigante de Dom Casmurro seja sua capacidade de gerar debates que nunca chegam a uma conclusão definitiva. Aliás, penso que se Machado de Assis pudesse ser questionado diretamente sobre a culpa ou a inocência de Capitu, é provável que ele recusasse a dar uma resposta. Ou respondesse: “Pessoal, quem escreveu o livro foi o Bentinho, parem de me questionarem isso!”. Afinal, a força de sua obra está justamente em sua ambiguidade, em sua habilidade de provocar diferentes interpretações e reflexões. Além disso, Bentinho nutria uma admiração pelo amigo Escobar, sentimento que era compartilhado por sua própria família. Todos gostavam de Escobar, admiravam sua inteligência e sua simpatia. Dona Glória o tratava com carinho, José Dias o elogiava constantemente, e até Capitu parecia ter grande apreço por ele, o que, paradoxalmente, alimentava ainda mais os ciúmes infundados de Bentinho. Essa admiração geral por Escobar reforça a ideia de que a proximidade entre ele e Capitu era natural e aceitável dentro do círculo social da família. Se houvesse qualquer indício real de traição, dificilmente passaria despercebido em um ambiente tão observador e conservador. O próprio Bentinho, que em sua narrativa busca justificar suas desconfianças, nunca apresenta uma evidência concreta — apenas suposições e sentimentos que, ao longo do romance, demonstram-se cada vez mais fruto de sua mente atormentada pelo ciúme. E diante do que relata sobre a personalidade de Capitu e Escobar, parece evidente: Ambos assumiriam, na hora, para Bentinho, se tivesse ocorrido algo entre eles. Assim, não houve traição. Nem da esposa. Nem do amigo.   (*) Alan Castilho Rodrigues Moreira é Advogado, Jornalista e Escritor.
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