‘Nunca tinha ouvido falar em incel’: a conversa de um adolescente com os pais sobre a série ‘Adolescência’


Ben, de 15 anos, viu a série da Netflix com os pais e discutiu sobre influencers misóginos masculinos e amizade entre meninos e meninas Em Adolescência, Jamie, de 13 anos, é acusado de assassinato
Netflix via BBC
“É simplesmente estranho falar sobre questões sexuais com seus pais”, diz Ben*, de 15 anos.
Seus pais, Sophie e Martin, na faixa dos 40 anos, concordam compreensivamente.
Eles estão discutindo “grandes questões” sobre o uso das redes sociais por Ben, para quem as conversas sobre sexo e pornografia com os pais são “as piores”.
A família – sem a irmã mais nova de Ben, que é muito jovem para participar da discussão – está reunida na sala de estar para dissecar o grande sucesso da Netflix, a série Adolescência, que assistiram na noite anterior.
A série acompanha a história de Jamie, um protagonista de 13 anos acusado de assassinar uma colega após ser exposto a conteúdos misóginos online e sofrer cyberbullying.
Os pais estão preocupados com o impacto do conteúdo a que seu filho é exposto, e Ben, que também se preocupa, está tentando impor limites ao seu próprio uso do celular.
Diante dessas preocupações e da forma como elas se relacionam com os temas de Adolescência, a família concordou em assistir ao programa junta e permitiu que a BBC News acompanhasse sua discussão, que abordou desde a relevância do influenciador misógino Andrew Tate até se meninos e meninas podem ser amigos.
‘Apenas chamam os outros de virgens’
Ben está sentado no sofá da sala, rolando o feed no celular antes da conversa começar.
Seus pais se acomodam, parecendo relaxados, apesar dos assuntos difíceis que estão prestes a discutir. Fotos de familiares enfeitam as prateleiras da sala, e um piano está encostado na parede.
O casal se esforçara para criar um ambiente “muito aberto”, diz Sophie, onde “todos os temas estão sobre a mesa”. Enquanto assistia à série, ela fez uma lista de tópicos para discutir com Ben.
Ben, um adolescente confiante e expressivo, é popular entre os colegas de sua escola pública só para meninos.
No entanto, as mesmas características que o tornam querido entre os amigos frequentemente o colocam em apuros com os professores, que o punem com detenções ou o mandam para isolamento por fazer o que sua mãe descreve como “comentários inadequados”.
Na série, Jamie e seus colegas usam uma linguagem associada à “machosfera” – sites e fóruns online que promovem misoginia e oposição ao feminismo – e à cultura incel.
Incels, abreviação de involuntary celibates (celibatários involuntários), são homens que culpam as mulheres por sua incapacidade de encontrar uma parceira sexual. Essa ideologia tem sido associada a ataques terroristas e assassinatos nos últimos anos.
Para surpresa de seus pais, “incel” não era um termo familiar para Ben, e seu pai, Martin, precisou explicá-lo enquanto assistiam ao programa.
“As pessoas só chamam umas às outras de ‘virgens’. Nunca tinha ouvido ‘incel’ antes”, diz Ben. Ele sugere que o termo pode ter “sumido” das redes sociais dos jovens nos últimos anos, refletindo a rapidez com que as conversas online evoluem.
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Ben conta aos pais que reconhece alguns elementos da série, como as brigas e o cyberbullying na escola. No entanto, ele acha que a série apenas dá um “retrato aproximado” da vida de um adolescente hoje em dia e que foi feita, principalmente, para “um adulto que não está online”.
Por exemplo, segundo ele, o programa ignora o lado positivo das redes sociais. Além disso, alguns detalhes – como os supostos códigos secretos de emojis usados por crianças – parecem irreais.
Por essa razão, Martin, que diz ter gostado da tensão dramática da série, também sente que o programa explora o “pior pesadelo” dos pais em relação ao uso do celular pelos filhos, favorecendo o choque e o drama em detrimento do realismo para provocar uma reação nos adultos.
Ben acredita que série não mostra lado bom das redes sociais
Netflix via BBC
Andrew Tate, influenciador e figura central no obscuro mundo online da machosfera, é mencionado pelo nome na série e tem sido motivo de grande preocupação entre pais e professores.
No entanto, Ben diz que, embora Tate tenha sido “popular” em sua escola há cerca de dois anos, agora ele já é “coisa do passado”.
Ben percebeu como Tate mistura saúde e bem-estar com política. “Algumas coisas que ele fala, como ‘se exercite por uma hora por dia’ – ok, isso está certo. Mas aí ele combina isso com ideias de extrema-direita, como ‘o homem deve sair para trabalhar e a mulher deve ficar em casa'”, explica Ben.
Ambos os pais concordam que Tate não é o culpado pela misoginia. Para eles, ele é apenas um sintoma de “um problema social maior”.
Meninos e meninas podem ser amigos?
Esse problema é representado de forma marcante na visão sombria que Adolescência apresenta sobre as amizades entre meninos e meninas na era das redes sociais. O protagonista, Jamie, não tem amigas e parece enxergar as relações com o sexo oposto por uma ótica de dominação e manipulação.
Sophie está preocupada com o fato de que, no grupo de Ben, as interações entre garotos e garotas são distantes e impessoais.
Ela comenta que seu filho não tem muitas oportunidades de conviver com meninas da mesma idade e teme que ele esteja aprendendo a lidar com elas principalmente por meio das redes sociais. “É algo muito distorcido”, diz. “Eles não sabem como agir uns com os outros.”
Então, ela faz uma pergunta ao filho: “Se você não sabe como falar com meninas quando está se sentindo estranho, se você pensa ‘aff, não sei nem como me vestir’, onde você procura ajuda?”.
“Online”, responde Ben.
“Então, é um ciclo sem fim”, diz sua mãe. “É de lá que eles tiram as informações.”
Ben não se sente envergonhado de admitir que tem “usado o ChatGPT há uns dois anos” para obter esse tipo de conselho. “Ou o TikTok”, acrescenta.
Sophie diz que Ben aprendeu mais sobre amizade com o sexo oposto durante uma visita à casa de seu primo, que estuda em uma escola mista e tem amigas.
Ela lembra que o primo de Ben o repreendeu depois que ele perguntou se o primo sentia atração por uma amiga.
“Não lembro dele ter ficado irritado comigo assim, mas ok”, diz Ben.
Eles discutem suas diferentes lembranças do episódio até chegarem a uma versão em que concordam: “O primo dele disse algo como: ‘Não, ela é minha amiga. Não penso nela dessa forma'”, conta Sophie.
“Isso foi uma revelação para ele”, acrescenta. Virando-se para Ben, ela relembra: “Você voltou de lá dizendo: ‘É muito melhor na casa do meu primo, meninos e meninas são amigos'”.
Compartilhamento de imagens íntimas
Na série da Netflix, a vítima de Jamie, Katie, foi submetida a uma campanha misógina de bullying depois que um colega de classe compartilhou imagens íntimas dela sem o seu consentimento.
A conversa de Jamie sobre o incidente com uma psicóloga infantil, interpretada por Erin Doherty, é um momento chave do aclamado terceiro episódio da série.
Ben também já viu esse tipo de abuso de confiança entre seus colegas. “Tem um cara aqui perto, e [uma foto de] suas partes íntimas vazou em um grupo gigantesco com várias pessoas”, ele diz. “Isso teve muita repercussão no TikTok.”
A série começa com um episódio em que a polícia interroga Jamie sobre imagens sexuais de mulheres adultas que ele compartilhou em sua página no Instagram, sugerindo a facilidade com que adolescentes podem acessar pornografia.
Isso soa familiar para Ben, que acha que a pornografia é o “maior problema” entre seus colegas. Ele conhece meninos que são “viciados” nisso: “Eles dependem disso. Tem pessoas no meu ano que terão um dia péssimo a menos que assistam.”
Ben se agita um pouco enquanto fala sobre pornografia, olhando para a parede ou mexendo no celular.
Ele parece mais à vontade falando sobre outras formas de conteúdo preocupante que os jovens encontram online.
Ele estima que “um em cada 10” vídeos que assiste no celular contenha material perturbador, incluindo cenas de violência extrema. E os pais de Ben não têm ilusões de que seu filho está “seguro” só porque está no computador no andar de cima – ao contrário dos pais de Jamie na série.
O que pode ser feito?
Para Martin e Sophie, a solução está em oferecer às crianças mais oportunidades de “participar” da sociedade e construir sua autoestima.
Eles dizem que também estão interessados em que seu filho tenha uma “ampla gama” de modelos masculinos para se inspirar. Ben, que parou várias vezes para olhar o celular durante a conversa, volta à discussão.
Ele fica animado ao elogiar seus treinadores esportivos, cujos “valores morais muito fortes” ele admira.
Os pais concordam, claramente satisfeitos com o entusiasmo do filho. Eles dizem que tentam preencher a vida do filho com atividades para tirá-lo do celular. Mas isso é caro, dizem eles, e coloca os estudantes mais pobres em desvantagem.
Sophie fala sobre o personagem principal da série, Jamie: “Ele não tem esporte. Ele não se sente bem consigo mesmo. O pai dele desvia o olhar quando ele falha.”
Adolescência mostra que crianças com oportunidades limitadas para construir sua autoestima são mais “vulneráveis” às mensagens predatórias dos influenciadores misóginos, diz Sophie.
Ambos os pais concordam que as empresas de tecnologia, o governo, as escolas e as famílias têm a responsabilidade de oferecer aos jovens uma alternativa convincente ao chamamento da machoesfera.
Eles insistem que os pais não podem fazer isso sozinhos. Como Sophie diz: “É um tsunami e alguém me deu um guarda-chuva.”
Ben acredita que o que acontece online é frequentemente considerado irrelevante para o mundo real pelos adultos. Ele acha que isso é um erro; as redes sociais devem ser tratadas “como a vida real – porque é a vida real”, ele diz.
*Todos os nomes nesta reportagem foram alterados.
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