Na noite em que o futebol deveria ser celebração e rivalidade apenas dentro das quatro linhas, o Allianz Parque se tornou palco de mais um episódio lamentável de racismo. Um torcedor do Palmeiras foi flagrado fazendo gestos discriminatórios em direção à torcida do Cerro Porteño durante a vitória do time paulista pela Libertadores da América. As imagens foram entregues ao clube, que afirmou estar utilizando recursos de biometria facial e monitoramento para identificar o responsável e aplicar sanções, como o banimento da plataforma de ingressos.

Foto: Reprodução / Redes sociais
A iniciativa do clube é acertada, mas insuficiente. Afinal, não estamos diante de um caso isolado. O racismo é um fenômeno estrutural que se manifesta cotidianamente, e cada vez com mais frequência nos estádios de futebol, onde a paixão muitas vezes é usada como justificativa para comportamentos inaceitáveis, refletindo as contradições da sociedade brasileira: o mito da democracia racial, a tolerância seletiva e o preconceito disfarçado de folclore.
A Conmebol, por sua vez, anunciou que abriu um processo disciplinar contra o Palmeiras.
Ironia à parte, o clube brasileiro agora se encontra no papel oposto ao que ocupou recentemente, quando criticou veementemente a entidade pela punição considerada branda ao Cerro Porteño em caso semelhante envolvendo o jovem Luighi Hanri Sousa Santos, da equipe sub-20.
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A diferença? O alvo agora não é mais um jogador brasileiro, mas torcedores paraguaios.
De todo modo, o ciclo se repete. Quando o preconceito é contra “o outro”, nosso senso de justiça inflama. Quando somos confrontados com o espelho da nossa própria intolerância, buscamos minimizar, relativizar ou transferir a responsabilidade. A fala recente do paraguaio Ángel Romero, jogador do Corinthians, sobre o racismo e a xenofobia presentes no Brasil contra pretos e estrangeiros, especialmente latino-americanos, caiu no silêncio incômodo da omissão coletiva.
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Casos como o do goleiro Mário Lúcio Duarte Costa, o Aranha, do Santos, chamado de “macaco” por um estádio inteiro de torcedores do Grêmio, na Copa do Brasil de 2014, não são meras exceções e ainda ecoam vergonhosamente em nossas memórias. A punição ao Tricolor Gaúcho pelo Superior Tribunal de Justiça Desportiva naquela ocasião foi exemplar, pois em razão das injúrias raciais, o segundo jogo entre as equipes foi anulado com a perda de três pontos pelo time gaúcho em decisão do Pleno do STJD, e a equipe santista seguiu na competição sem necessidade do jogo de volta. Mas em mais uma triste ironia do destino, um ano depois, o goleiro voltou a ouvir injúrias racistas, mas desta vez com os xingamentos vindos dos torcedores do próprio Santos, o clube que defendia, por causa de ações trabalhistas que o jogador moveu contra o Peixe na Justiça.
É hora de ir além das multas
A verdade é que o fantasma do racismo transcende as fronteiras nacionais. Em solo europeu, o atacante Vinícius Júnior, do Real Madrid, recentemente e mais uma vez foi alvo de insultos racistas por parte de torcedores do Atlético de Madrid durante um jogo da Champions League. Em outra partida, contra o Manchester City, o jogador também sofreu provocações quando a torcida adversária expôs uma faixa zombando de sua indicação ao Ballon d’Or.
Esses episódios ilustram de forma clara que as medidas atualmente adotadas – principalmente multas financeiras – não são suficientes para erradicar o preconceito que insiste em marcar presença nos estádios. É urgente que as entidades esportivas adotem ações mais contundentes e coordenadas. A exclusão de torcedores que proferem ofensas racistas, aliados a programas educativos contínuos e a punições esportivas rigorosas aplicadas aos clubes envolvidos, são estratégias que podem transformar essa realidade. E punições severas evidentemente.
Enquanto atos racistas forem tratados como desvios individuais e não como sintomas de uma doença coletiva, seguiremos aplaudindo gols e fechando os olhos para as ofensas nas arquibancadas. E o “racismo nosso de cada dia” seguirá, impune, entre cantos de torcida e gritos de intolerância disfarçados de paixão.