Por que Bolsonaro fez várias cirurgias após facada: ‘Quanto mais mexe, maior o risco’


Ex-presidente foi submetido a uma operação complexa após sofrer um novo quadro de obstrução intestinal. Entenda por que esse problema se repete e o que pode ser feito para tratá-lo.
O ex-presidente Jair Bolsonaro passou por 6 cirurgias desde o atentado em 2018
Reuters via BBC
O ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) precisou ser submetido a uma cirurgia “extensa” e de “grande porte” para remover aderências e reconstruir a parede abdominal.
Segundo o boletim médico divulgado no domingo (13/4), o procedimento realizado em Brasília durou cerca de 12 horas, “transcorreu sem intercorrências e não exigiu transfusão de sangue”.
“No momento, o ex-presidente encontra-se internado na Unidade de Terapia Intensiva [UTI], clinicamente estável, sem dor, e recebe suporte clínico, nutricional e medidas de prevenção de infecções”, conclui a nota.
O cardiologista Leandro Echenique, que acompanha Bolsonaro, destacou que procedimentos do tipo podem levar “a uma série de intercorrências”.
“Há o aumento do risco de algumas infecções, de precisar de medicamentos para controlar a pressão. Há um aumento do risco de trombose, problemas de coagulação do sangue…”, detalhou o médico durante entrevista coletiva nesta segunda-feira (14/4).
“Todas as medidas preventivas serão tomadas, por isso que ele se encontra na UTI neste momento.”
Echenique acrescentou que o pós-operatório de Bolsonaro será “muito delicado e prolongado” e que não há previsão de alta.
Já o cirurgião Cláudio Birolini, chefe da equipe que realizou o procedimento, descreveu o abdômen do ex-presidente como “hostil”, por causa das múltiplas cirurgias as quais ele precisou ser submetido.
“Isso já antecipava que seria um procedimento bastante complexo e trabalhoso”, comentou Birolini a jornalistas.
Bolsonaro apresentou sinais de que tinha algo mais grave na sexta-feira (11/4), quando participava de eventos em algumas cidades do interior do Rio Grande do Norte.
O ex-presidente sentiu fortes dores no abdômen, apresentou dificuldades para comer e na digestão e foi internado às pressas.
Ele foi transferido para Natal, a capital do Estado, e depois levado numa UTI móvel até Brasília, onde passou pela cirurgia.
Bolsonaro apresenta frequentes obstruções intestinais, que estão relacionadas à facada que ele sofreu em Juiz de Fora (MG), durante a campanha das eleições de 2018.
Médicos ouvidos pela BBC News Brasil explicam que o surgimento das tais aderências — uma espécie de cicatriz fibrosa — pode acontecer diante de qualquer procedimento nessa região do corpo.
Mas não se sabe ao certo os fatores que levam a esse quadro ou os motivos de alguns pacientes o desenvolverem e outros não.
Quem apresenta aderências e sofre com quadros de obstrução intestinal, como Bolsonaro, costuma ser tratado de forma conservadora, com jejum e sondas, mas podem precisar de cirurgias para resolver o problema.
No entanto, esses procedimentos aumentam o risco de novas aderências — e de novas intervenções.
O que causa as obstruções intestinais de Bolsonaro?
Em 6 setembro de 2018, Bolsonaro participava de um evento de campanha em Juiz de Fora quando sofreu um atentado a faca.
O golpe acertou o abdômen do então candidato, que foi rapidamente enviado a uma unidade de saúde e, depois, a um centro cirúrgico, onde passou pelas primeiras intervenções.No dia seguinte, Bolsonaro foi transferido para um hospital em São Paulo, onde passou por uma segunda cirurgia em 12 de setembro.
O objetivo era retirar as primeiras aderências — uma espécie de cicatriz fibrosa que surgiu após a primeira operação — que obstruíam seu intestino.
Os cirurgiões aproveitaram o procedimento para corrigir uma fístula — um canal de comunicação anômalo que surge no corpo — desenvolvida em uma das suturas feitas durante a primeira operação.
Em entrevista à BBC News Brasil, o médico Raphael Di Paula, chefe de cirurgia oncológica do Hospital Alemão Oswaldo Cruz, em São Paulo, explica que as aderências podem surgir quando o peritônio, uma membrana que reveste o interior do abdômen, é violado.
“Toda vez que você entra na cavidade abdominal para fazer qualquer procedimento, dos mais simples aos complexos, pode gerar processos aderenciais”, comenta o médico, que não esteve envolvido diretamente com o caso de Bolsonaro.
“A partir do momento em que você faz uma intervenção ali, pode gerar uma espécie de irritação ou inflamação que leva às cicatrizes e aderências.”
Di Paula pontua que não existem fatores de risco ou características conhecidas que explicam os motivos de alguns pacientes desenvolverem essas reações, enquanto outros nunca têm esse problema.
Uma das únicas razões, segundo ele, são as perfurações intestinais — quando as paredes desse órgão sofrem algum tipo de rompimento e parte do conteúdo interno extravasa para o resto do abdômen.
Sabe-se que isso aconteceu com Bolsonaro: a facada chegou a perfurar um trecho do intestino dele.
Por que problema é recorrente?
Em janeiro de 2019, já no cargo de presidente, Bolsonaro fez uma terceira cirurgia — dessa vez, para retirar a bolsa de colostomia que coletava as fezes a partir de um orifício aberto no abdômen.
Na ocasião, os médicos constataram uma grande quantidade de aderências no sistema digestivo dele.
Na prática, o processo de cicatrização pós-cirúrgico estava fazendo com que trechos do intestino dele se colassem.
Mas isso traz um problema: os intestinos realizam uma série de movimentos para “empurrar” a comida, digerir os nutrientes e descartar o que sobra na forma de fezes.
As aderências, no entanto, “prendem” ou “amarram” esses órgãos, deixando-os sem a mobilidade necessária para funcionar adequadamente.
Isso pode gerar dobras no tubo digestivo que impedem a passagem de alimentos e enzimas muito importantes.
O gastroenterologista e cirurgião Flávio Quilici, professor da Pontifícia Universidade Católica de Campinas, explica à BBC News Brasil que os intestinos têm uma estrutura parecida a de canos ou mangueiras.
“Se você pisar na mangueira ou entrar alguma pedra ali dentro, isso causa um entupimento que não deixa a água passar”, diz Quilici.
O mesmo raciocínio se aplica ao nosso tubo digestivo: caso alguma coisa fique emperrada ali dentro, não há como o conteúdo transitar pelos órgãos e seguir adiante.
Bolsonaro ainda passou por operações para corrigir hérnias — pequenos escapes do intestino na parede abdominal relacionadas às inúmeras incisões e intervenções — em setembro de 2019 e setembro de 2023.
Como é o tratamento de uma obstrução intestinal?
Di Paula explica que, na maioria das vezes, o tratamento da obstrução intestinal não envolve cirurgias.
O primeiro passo é deixar o paciente em jejum e passar uma sonda nasogástrica (que vai do nariz até o estômago).
O objetivo aqui é reduzir a presença de gases e líquidos que estão apertados no sistema digestivo e geram sintomas como inchaço e dor.
Esses tratamentos aliviam o quadro — com isso, o intestino pode desobstruir e voltar a funcionar normalmente.
No entanto, há casos em que esse órgão está muito dobrado e não há jeito dele retornar ao normal. O caminho, então, é partir para um procedimento mais invasivo.
O tamanho da operação vai depender do grau da obstrução.
“Há casos em que você tem só uma brida [uma cicatriz fibrosa], que lembra muito a corda mais grossa de um violão. Daí você precisa ir até o local, em um procedimento minimamente invasivo, e cortar. É um segundo, e acabou”, afirma Di Paula.
Em outras situações, as aderências são mais extensas. Daí é necessário fazer uma cirurgia convencional, abrir o abdômen e remover todas as cicatrizes que grudam os intestinos e os demais órgãos dessa região.
Di Paula detalha que essas intervenções podem ser “absurdamente complexas” e demorar horas. No caso de Bolsonaro, ele passou desta vez 12 horas na sala de cirurgia.
“Muitas vezes, é necessário remoldar todas as alças intestinais. Precisamos praticamente esculpir novamente o órgão, até soltar tudo e achar o ponto onde está a obstrução”, complementa ele.
Alguns pacientes apresentam quadros de necrose, ou morte de um trecho do tecido intestinal. Nessas situações, o cirurgião precisa fazer cortes para remover as partes afetadas e reconectar o órgão novamente.
Di Paula diz que, apesar de complexos e demorados, esses procedimentos costumam ter “um prognóstico muito bom”, com um restauro completo do trânsito intestinal.
Como evitar novas cirurgias
A questão é que essas operações também aumentam o risco de novas aderências no futuro.
Por um lado, elas são necessárias para resolver a obstrução intestinal e restabelecer o fluxo do sistema digestivo.
Por outro, em pacientes que já tem histórico, elas representam um risco de novos processos de fibrose e formação de cicatrizes — que, por sua vez, podem diminuir ainda mais a mobilidade do abdômen e causar novas obstruções.
“Quanto mais o peritônio é violado, quanto mais mexemos nessas alças intestinais e no abdômen, maior o risco de novas aderências. A tendência é que elas fiquem mais fortes, firmes e complicadas”, lembra Di Paula.
“Isso não quer dizer que o paciente vai ter necessariamente novas obstruções, mas ele apresenta uma probabilidade maior de sofrer com esse quadro novamente”, pondera ele.
Infelizmente, não existe nada que possa ser feito para evitar a formação das aderências e o desenvolvimento de bloqueios no intestino.
“A gente precisa contar com a chance daquilo não acontecer de novo”, diz ele.
“Não existe uma recomendação para o paciente fazer mais ou menos atividade física, deixar de comer alguma coisa, acrescentar algo na dieta, tomar um medicamento… Infelizmente, não há nenhuma evidência de algo que seja indicado nesses casos”, prossegue.
“É preciso apenas manter um acompanhamento do quadro clínico”, conclui.
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